do site da CARTA CAPITAL
por Phydia de Athayde
Estudo inédito analisa os efeitos sobre usuários no intervalo de cinco anos
Se você tomar uma dessas pílulas, sentirá a música de uma maneira totalmente nova, o corpo energizado, uma vontade de abraçar todo o mundo e, no dia seguinte, ficará meio deprimido. Esse é o ciclo básico de uma experiência com ecstasy e resume boa parte do que se sabe sobre o uso da droga. Mas o que acontece com os usuários anos depois? Um estudo sem precedentes no mundo tem a resposta e acaba de ser concluído. O psicólogo Murilo Battisti, pesquisador da Universidade Federal de São Paulo, acompanhou um grupo de usuários em um intervalo de cinco anos e identificou não só padrões de consumo, mas também o que leva alguns a abandoná-la e outros a manter ou substituir a pílula pela cocaína. Com exclusividade para CartaCapital, detalhes e conclusões do estudo.
A pesquisa é um acompanhamento da história natural do uso de ecstasy. Battisti é estudioso do consumo de drogas sintéticas no Brasil e descreve o perfil do usuário. “O principal contexto de uso está ligado à cena da música eletrônica. O usuário é o jovem adulto, de classe média a alta, consumidor de outras drogas (lícitas e ilícitas) e com baixa percepção dos riscos do ecstasy”, explica.
Nesse espectro, Battisti identificou dois grupos. De um lado, a “geração rave”, universitários que consumiam a droga há dois ou três anos, geralmente em raves e clubs, em doses pequenas (de meio a dois comprimidos) e de forma esporádica. Do outro, o “mundinho da noite”, profissionais das festas e casas noturnas movidas a música eletrônica (DJs, promoters, hostess etc.) que consumiam a droga há cinco anos, geralmente em clubs, em doses altas (de dois a seis comprimidos) e com muita freqüência.
No intervalo entre 2001 e 2006, para os universitários a droga ou desapareceu ou seu consumo diminuiu para menos da metade. “Esse grupo passou a assumir papéis adultos na vida e tomar ecstasy perdeu o sentido”, diz Battisti, que classifica este como um padrão transitório de uso da droga. Os oriundos da geração rave apontaram, com o tempo, mais preocupação com a saúde e melhor percepção dos riscos do ecstasy.
No grupo da noite, por sua vez, o ecstasy continuou, com uma tendência à moderação na quantidade e ao retorno à cocaína (que já consumiam). “A vida desse grupo mudou pouco e, para eles, tomar ecstasy é quase uma conseqüência do trabalho”, analisa o pesquisador. Este grupo mencionou, depois de cinco anos, o aumento dos efeitos adversos – como a depressão – e a má qualidade da pílula como desestímulos ao consumo.
Um único usuário aumentou o consumo. De perfil “geração rave” (75% dos pesquisados), o jovem apresentava sinais de uso compulsivo em 2001 que se confirmaram em 2006. Ele é fisicamente dependente de ecstasy, um fato raro no uso da droga.
A pesquisa de Battisti é qualitativa e não deve ser avaliada por números absolutos. O grupo estudado teve 32 usuários na primeira etapa e 21 na segunda, pois alguns perderam contato e outros não quiseram prosseguir. “A amostra é numericamente pequena, mas é possível fazer inferências na população porque os perfis se repetem na sociedade”, explica.
Não há dados quantitativos sobre consumo de ecstasy no Brasil e as estimativas são feitas a partir de apreensões feitas pela Polícia Federal. Entre a primeira e a segunda etapa da pesquisa, elas tiveram um aumento substancial (de 1.909 para 19.094 comprimidos). De janeiro a maio deste ano, a apreensão já passa de alarmantes 171 mil unidades. Embora isso possa ser reflexo de maior eficiência nas operações policiais, é razoável supor que haja um aumento na demanda. Todos os anos o Escritório das Nações Unidas contra Drogas e Crime (UNODC) divulga o Relatório Mundial das Drogas. As informações relativas ao Brasil vêm dos números da PF. A edição de 2007 sai no dia 26 deste mês e, provavelmente, alertará para o aumento do consumo de ecstasy no País.
Não é difícil encontrar usuários e ex-usuários em grandes núcleos urbanos como São Paulo. A figurinista paulistana Karina, de 30 anos, usou a droga como transição para a vida adulta. Começou a tomar ecstasy aos 23. “Foi fase, coisa de moleca. Eu ganhava grana, saí de casa e tinha um namorado que tomava muito. Eu ia na dele, usava várias drogas e tomava bala (ecstasy) todo fim de semana, de três a cinco por noite, em clubes de música eletrônica”, diz.
No auge do consumo, Karina começou a sentir mais “crises de choro, sensação de morte”. Procurou um psiquiatra, foi diagnosticada com depressão e tratou-se por seis meses. “Resolvi colocar minha vida em ordem. Mudei de profissão, decidi cursar moda, voltei para a casa dos meus pais, terminei aquele relacionamento”, relata. Hoje Karina não quer mais saber da droga: “Não uso nem maconha. Tenho outras motivações, amo meu trabalho, gosto de acordar cedo, ter a cabeça ativa. Não me interessa mais estar fora do ar”. Do antigo namorado, más notícias. Ele tornou-se dependente de cocaína. “Aquele lá se perdeu para sempre”, diz ela.
O psiquiatra Dartiu Xavier da Silveira coordena o Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes (Proad) da Unifesp e descreve uma sensação comum a quem toma ecstasy: “No início relatam efeitos fantásticos. Depois aumentam os problemas, e eles sempre esperam reviver aquela primeira sensação”.
Silveira diz que a dependência de ecstasy é rara. A médio e longo prazo, acredita-se que a droga provoca depressão e transtornos psíquicos ansiosos, como síndrome do pânico e fobia social, em usuários com predisposição. “Mesmo sem a droga, a maioria ainda terá de tratar os problemas por ela desencadeados”, alerta. Na parcela sem predisposição aos transtornos, ele acredita que o ecstasy possa ter papel semelhante ao da maconha. “Grande parte abandona o uso depois de alguns anos e segue a vida”, diz, mas ressalta que “há pessoas viciadas em um estado alterado de consciência, usuários compulsivos de qualquer droga”.
A pesquisa de Murilo Battisti trata de usuários contumazes em 2001. Desde então, o consumo da droga ganhou novos contornos. “Esse estudo é relevante por nos dar diretrizes para pensarmos medidas de saúde pública adequadas”, afirma Ana Regina Noto, pesquisadora do Centro Brasileiro de Informação sobre Drogas (Cebrid) e orientadora do doutorado de Battisti.
Ainda que indique que a maior parte dos usuários abandonou ou reduziu o consumo do ecstasy, as conclusões de Battisti não são amenas. “Muito do impacto negativo passa despercebido e muitas vezes não é associado ao ecstasy”, diz, referindo-se a problemas psiquiátricos. “O ecstasy deixou de ser uma novidade. Passou a ser mais uma droga do arsenal”, conclui.
Leia na edição de CartaCapital que já está nas bancas a polêmica suspensão do financiamento do projeto Baladaboa, que informa usuários dos riscos da droga